Com mais de 500 pessoas, a audiência pública, organizada pela deputada Dandara Tonantzin (PT/MG), entitulada “As cotas abrem portas: ações afirmativas, justiça racial e democracia no Brasil”, reuniu diversos representantes dos movimentos negro, estudantil e acadêmico, sociedade civil organizada, intelectualidade negra e lideranças políticas para debater o aperfeiçoamento da Lei de Cotas no Brasil. A deputada é coordenadora da Frente Parlamentar Mista Antirracismo e está à frente da relatoria da revisão da lei de cotas na Câmara Federal.
A Lei de Cotas (12.711/2012) determinou que as universidades e institutos federais destinassem metade de suas vagas para estudantes que tenham cursado o Ensino Médio em escolas públicas, com aplicação de reserva destinada a negros, indígenas, quilombolas, pessoas com deficiência e com recorte de renda. Agora, depois de dez anos, o texto prevê que seja realizada uma revisão da lei.
“Assumi a relatoria da lei há quase três meses e já passamos por mais de dez universidades públicas no intuito de construir o novo texto da lei de forma coletiva. Essa audiência pública foi mais um importante espaço de seguir escutando as demandas das organizações dos movimentos negro, estudantil, indígena, quilombola, das pessoas com deficiência e do conjunto da intelectualidade negra. Passados dez anos da sanção da lei, é preciso fazê-la avançar”, disse Dandara.
O projeto (PL 5384/20) já tem urgência aprovada na Câmara e a previsão é de que seja votado no segundo semestre. “Entre as diversas demandas que já recebemos, consideramos essencial para o aprimoramento da lei: a regulamentação das bancas de heteroidentificação para verificação da autodeclaração e para combater as fraudes, a garantia da prioridade aos cotistas, que necessitem de apoio financeiro, às políticas de assistência estudantil, ampliação das cotas para a pós-graduação (mestrado e doutorado) e o aperfeiçoamento da seleção dos cotistas através da criação de um modelo único de ingresso pelas cotas a iniciar pela ampla concorrência”, apontou.
“A adoção da política de cotas é uma das maiores conquistas da sociedade brasileira desde a redemocratização – resultado de décadas de discussão, mobilização, suor e sangue do povo preto e pobre em nosso país. Em uma sociedade de privilégios, aperfeiçoar a lei de cotas significa democratizar a fundo a educação superior em nosso país”, disse.
Durante a audiência pública, a professora e ex-ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, hoje Ministério da Igualdade Racial, Nilma Lino Gomes salientou a importância da lei de cotas nesses últimos dez anos. “As cotas trouxeram para a sociedade brasileira essa radicalidade de entender que o ensino superior é um direito, para todos, todas e todes. Um direito, principalmente, para aquelas e aqueles que antes não o tinham”. O ex-deputado federal e primeiro relator da lei de cotas, Carlos Abicalil, pontuou o novo cenário em que hoje se discute a lei. “É uma alegria ver uma sala tão mais colorida do que aquela que estive aqui, em agosto de 2005, para defender a Lei de Cotas, quando a gente tinha um conjunto enorme de adversários e de adversidades”
A vice-coordenadora da Frente Parlamentar Mista Antirracismo, deputada federal Carol Dartora (PT/PR) também esteve presente e fez um balanço desses anos de política de ação afirmativa no ensino superior público. “Claro que a gente entende a importância da avaliação nesses 10 anos da Lei de Cotas, a importância de que tenhamos um diagnóstico, mas a gente também chega nesses 10 anos comemorando porque a gente sabe que as cotas são uma política efetiva! Tanto no Brasil, quanto no redor do mundo, onde as cotas raciais foram aplicadas, de alguma forma elas atingiram a sua finalidade. A gente costuma dizer: para promover a inclusão: sem cotas, 100 anos. Com cotas, 20 anos. E aqui a gente chega aos 10 anos colhendo muitos frutos!”, disse.
A presidente da União Nacional dos Estudantes, Bruna Brelaz, reivindicou a luta das mulheres negras que abriram caminho para que hoje as cotas sejam realidade. “Graças a mulheres como Nilma e tantas outras de nós, ao movimento negro, ao movimento estudantil, hoje nós podemos chegar aos plenários de Congresso da UNE e ver uma nova cara da universidade brasileira”, salientou. E o co-fundador da Uneafro, Douglas Belchior, reivindicou a lei como fundamental para mudar a representatividade dentro das instituições de ensino públicas. “Eu não tenho nenhuma dúvida que as cotas abrem portas, inclusive enquanto a gente estava naquela fila imensa, a Dandara abriu as portas do Congresso para que a gente entrasse sem passar por aquela fila. Mas para conquistar as cotas, a gente teve que arrombar muita porta!”, disse. “Nós estamos dedicando parte da nossa vida a essa transformação, então nós temos o compromisso histórico; da nossa trajetória enquanto intelectuais negras nas universidades brasileiras, que não é uma coisa fácil; com essa agenda, fazendo o melhor que podemos fazer para a continuidade dessa política”, também reforçou Márcia Lima, secretaria do Ministério da Igualdade Racial.
O procurador da República, do Ministério Público Federal, Onésio Soares, também pontuou que, diferente do propagado à época da aprovação da lei, as cotas melhoraram a qualidade da educação pública brasileira e diversificaram a composição das instituições. “É preciso que a gente possa avançar! Não houve nenhum decréscimo da qualidade de ensino com a Lei de Cotas. Os estudantes cotistas apresentam o mesmo desempenho, ou até melhor, afinal, várias pesquisas apontam isso, e as universidades mantém o seu nível de excelência!”, disse.
Raul de Paiva Santos, coordenador-geral de diversidade e interseccionalidade do Ministério de Direitos Humanos e da Cidadania, pontuou que é preciso avançar para além dos mecanismos de democratização do acesso às universidades. “A gente precisa avaliar como tem sido a implementação das cotas e pensar os passos à frente! Nesse sentido, a gente reforça a importância de ações afirmativas dentro dos próprios editais nas universidades, no que se diz respeito à pesquisa, à extensão e também à bolsa permanência e vagas em moradias estudantis!”. A professora da UFMG e representante do Observatório de Políticas Públicas do Fonaprace, Licinia Corrêa, também concordou: “O nosso condicional apoio é a defesa da assistência estudantil como parte constitutiva da política afirmativa! Para nós, a política afirmativa hoje tem dois eixos importantes: o ingresso/acesso e a permanência. A permanência hoje para nós é um conceito fundamental pra gente pensar as trajetórias bem sucedidas de estudantes cotistas nas universidades!”.
Além de negros e negras, a população indígena e de pessoas com deficiência também foram beneficiadas pela lei. Diferente da população quilombola, cuja lei de cotas não faz nenhuma inferência. Por isso, um dos pontos de debate foi pensar como incluir essa comunidade como uma das beneficiárias da lei. “Aparecemos no contexto nacional em 1988, a partir da Constituição. 35 anos depois, a gente está aqui pensando políticas para o nosso povo: o povo negro e o povo quilombola. O Estado brasileiro durante esses 35 anos e também antes disso nunca se preocupou em saber qual é a nossa população: quantos nós somos e onde nós estamos nesse amplo território nacional? Como pensar políticas públicas para uma população que você sequer percebe a existência? Nós não estamos nos orçamentos públicos, nós estamos ausentes, portanto, das políticas públicas, em todos os níveis e todas as esferas do Estado braaileiro”, disse Maria Páscoa Sarmento, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). O diretor do Departamento de Línguas e Memórias Indígenas do Ministério dos Povos Indígenas, Eliel Benites, também comentou sobre a importância de ações afirmativas de inclusão dos povos indígenas nas universidades brasileiras: “os povos indígenas trazem consigo a memória, a sua cosmologia, o seu conhecimento, o seu território. Então, nós, povos indígenas, percebemos que as universidades também são um território indígena!”.
Ao final da audiência, os participantes também reforçaram a perspectiva de futuro e as possibilidades que as cotas abrem portas aos estudantes. “Se as cotas abrem portas, aqui a pergunta que eu faço é: porta para o quê? E eu diria para um futuro, para um Brasil mais democrático! E muito dos pesquisadores e pesquisadoras negros e negras que estão aqui ajudaram a abrir as portas para muitos e muitas estudantes que estão aqui!”, comentou Delton Felipe, da Associação Brasileira dos Pesquisadores Negros (ABPN). A diretora do PROIFES Federação e presidenta APUB-Sindicato, Marta Licia de Jesus também concordou. “As cotas abrem portas para a diminuição da injustiça social, a própria desconstrução, já antiga mas que demora muito a se concretizar, do mito da igualdade racial no nosso país e a possibilidade real de construir a democracia no interior das universidades e institutos federais, pensando o acesso e a permanência à educação, à pesquisa, à extensão”.
Dandara Tonantzin tem 29 anos e é a mais jovem negra deputada federal (PT/MG). Faz parte da nova geração de lideranças políticas que ocupa a Câmara Federal em uma legislatura com a maior diversidade de raça e gênero da história. Cotista tanto na graduação quanto na pós, é formada em pedagogia pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e mestre em educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).